12.12.10

A classe C mora ao lado

Matéria na Folha de hoje mostra o real mecanismo de ascenção social - esforço individual:

Sem ajuda do governo, três famílias de catadores de papel que moravam em barracos perto do Palácio do Planalto ascenderam à classe média


Fotos Lula Marques/Folhapress







JOHANNA NUBLAT
LULA MARQUES
DE BRASÍLIA 

Geovânia Silva tinha acabado de fazer um ano quando o migrante nordestino e ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência e virou seu vizinho. 
Enquanto Lula se instalava no Alvorada, ela vivia com a família num barraco de lona a poucos metros dali. 
Desnutrida, pesando o equivalente a um bebê de quatro meses, Geovânia integrava uma das 50 famílias de catadores de lixo que moravam no meio do mato. 
Reportagem da Folha de janeiro de 2003 mostrou a situação precária de quatro dessas famílias. Não comiam frutas ou verduras, o feijão era "ralo", a carne se resumia a costela uma vez na semana. 
Sete anos e oito meses depois, a Folha voltou a procurá-las. Três deixaram para trás a renda média de R$ 500 e ascenderam à nova classe média ou estão no limiar. 
Durante os mandatos de Lula, mas sem ajuda direta do governo, as três famílias fizeram parte do movimento que levou 29 milhões de pessoas a subir à classe C entre 2003 e 2009, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas. 
Essa nova classe média abarca agora 50,5% da população e reúne famílias com uma renda domiciliar entre R$ 1.126 e R$ 4.854 mensais, com variações relacionadas ao número de dependentes. 
A quarta família recebe há cerca de sete anos o Bolsa Família (que varia de R$ 22 a R$ 200) e deixou há um mês o mato para viver no terreno de um parente com a renda do benefício e de bicos. 

CAMA BOX E SOFÁ 
Geovânia, hoje com quase nove anos, está na escola. Os dois irmãos vão à creche. 
Ela e a família se mudaram há dois anos para a Vila Planalto, bairro colado ao mato em que viveram, criado para abrigar os engenheiros responsáveis pela construção da nova capital, há 50 anos. 
Moram num quarto e sala com TV, DVD, fogão, geladeira, cama box e micro-ondas -os últimos três, novos e pagos à vista. O pai, José Eudo da Silva, 31, deixou há semanas a função de catador para ser ajudante de pedreiro. 
Pensa, porém, em comprar um cavalo e voltar a catar papel, o que mantém a renda acima de R$ 1.000. 
A mãe das crianças, Alguimar da Conceição, 26, afirma que hoje compra o quiser. "A gente come costela direto. 
Agora a gente compra tudo, até iogurte." "Cheguei a não ter um pão em casa. Meus filhos choravam e eu pedia que fossem dormir", lembra Ivonete Martins, 28, cunhada de Alguimar e ex-vizinha de Lula. 
Grávida do quarto filho, ela viu o marido morrer atropelado, foi espancada pelo companheiro seguinte, passou pelo alcoolismo e pegou o primogênito roubando. Há dois anos, ela se recompôs. 
Agora tem a carteira assinada e renda consideravelmente maior que a de 2003. Martins mora com o terceiro marido e os filhos no Itapoã, cidade-satélite de Brasília. Mobiliou a casa com itens de segunda mão, com exceção da geladeira, a primeira que comprou na vida. 
Conta que todo mês compra algo para completar a casa. Quando pensa no ex-vizinho ilustre, a mágoa de Martins aflora. "Passei por tudo isso sem ajuda nenhuma, o presidente nunca quis enxergar a gente ali", diz ela. 

FRANGO E COSTELA 
Foi também pelas próprias pernas que a família de Carina da Silva, 30, conseguiu se instalar em uma pequena casa no Gama, cidade-satélite. 
Ela é doméstica e o marido, Elissandro Damasceno, 32, trabalha com carga e descarga numa madeireira, além de fazer bicos de soldagem nas folgas. Eles comem frango e costela "quase todo dia" e também sentem os alimentos mais em conta. 
Apesar de estar inscrita no Bolsa Família, Carina nunca recebeu do governo. "Descobri que um conhecido pegava o dinheiro no meu nome. Prometeram resolver, mas ainda nada", disse. 
O filho mais velho, Rodrigo, 10, não lembra da trajetória da família. "Essa era a nossa casa?", surpreende-se ao ver as fotos de 2003. 
A casa não tinha mudado para Maria de Fátima Silva, 36, quando a reportagem a achou no meio do mato. Ela preparava o almoço: arroz e feijão. Em época de fartura, comia carcaça de galinha. 
Ganhou a vida com a reciclagem de papel por 17 anos. Nos últimos sete anos, a renda foi engordada pelo Bolsa Família. Silva deixou o mato há um mês para morar no terreno da mãe no Riacho Fundo 2, cidade-satélite. A renda agora se resume só à bolsa.



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