24.1.11

Cantora de Ópera após transplante de pulmão (TEDMED 2010)



Há um ano atrás Charity acordou de um coma após ter sido submetida a um transplante pulmonar bilateral. Nessa palestra proferida no TEDMED 2010, ela encanta a plateia cantando uma ária e compartilhando sua história.

23.1.11

Pulmões vivos no TEDMED 2010



Dr. Shaf Keshavjee, cirurgião torácico e diretor do Programa de Transplante Pulmonar de Toronto, falou sobre o maravilhoso milagre do transplante pulmonar no TEDMED 2010. Essa é a sua fascinante palestra, na qual ele levou ao palco pulmões suínos para inspeção manual pela plateia.

21.1.11

O Brasil, a Fé, o Rei e a Lei


Normalmente eu apenas retwitto os textos do Reinaldo Azevedo, mas este contém uma análise tão fenomenal que resolvi transcrevê-lo. 

O Brasil, a Fé, o Rei e a Lei



“A língua de que usam, toda pela costa, é uma: ainda que em certos vocábulos difere em algumas partes; mas não de maneira que se deixem de entender. (…) Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente.”

O que vocês lêem acima é um trecho da História da Província de Santa Cruz, de Pero Magalhães de Gandavo, escrita em 1578. Ele descreve os índios brasileiros ao rei de Portugal, segundo, como se nota, a visão do colonizador. A referência que faz à língua tupi e à “ausência” de três letras — o que impedia os índios de ter “fé, lei e rei” — é notavelmente tola mesmo para o século XVI. Em 1578, fazia seis anos que Os Lusíadas tinham sido publicados, e Camões já tinha, por meio de seus sonetos, traduzido boa parte da obra de Petrarca. José de Anchieta estava no Brasil havia 25 anos e já encontrara na cultura indígena os elementos de que precisava para a catequese e a colonização. A tolice de Gandavo, no entanto, ameaça virar uma espécie de emblema desta terra. O português se espalhou pelos quatro cantos do Brasil, com todos os seus “efes”, “eles” e “erres”. Tivemos rei. Tivemos até alguma fé. Mas, definitivamente, os “eles” não nos ensinaram o caminho da lei.

Escrevi ontem alguns posts sobre o caso da Anatel, que decidiu, ao arrepio da Constituição, quebrar o sigilo das comunicações telefônicas. A direção não esperou nem mesmo a decisão do Conselho, apressou-se e já comprou o equipamento com que pretende agredir o Artigo 5º da Carta que nos rege, numa decisão que pretende meramente administrativa. Sem atingir uma garantia constitucional, assegura a agência, ela não pode cumprir adequadamente as suas funções. Leitores me enviam comentários dos petralhas em sites por aí que aceitam qualquer lixo. Como de hábito, propagam a máxima dos estados totalitários: “Quem não deve não teme”. Em sociedades que abdicam da lei, a máxima há de ser justamente o oposto: “Deve temer justamente quem não deve”, já que os devedores costumam estar no encalço dos inocentes.

Não se trata de dar peso excessivo a uma questão aparentemente irrelevante, já que, dizem alguns, o sigilo das conversas não será violado. Pouco importa! Não cabe à Anatel o papel de juiz da Constituição; ninguém lhe outorgou a prerrogativa de dizer quais dispositivos valem e quais não valem. Se damos a um ente ou pessoa a licença para violar UMA lei, estamos, na prática, concedendo com a violação de QUALQUER lei. E noto que estamos nos referindo a uma instituição do estado, à qual só é permitido fazer o que lei estabelece. Nós, que somos os cidadãos, podemos fazer tudo o que ela não proíbe.

Há dois dias, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu as suas “férias” para visitar o ex-vice José Alencar no hospital. Fez saber que havia debatido com Dilma Rousseff o desastre no Rio e anunciou que, no devido (?) tempo, falará sobre os passaportes diplomáticos concedidos ilegalmente a OITO PESSOAS de sua família. Deu a entender que tem algo a dizer. É mesmo? Marco Aurélio Garcia, o dinossauro mantido como assessor de Dilma, afirmou que o caso só interessa àqueles 3% que achavam o governo ruim ou péssimo — vocês sabem: a turma do contra! Para o Cérbero do petismo, pouco importa se o benefício é ou não ilegal. A aprovação maciça de que gozava Lula lhe facultaria, ou aos seus, o privilégio indevido. A lei não serve para o Babalorixá de Banânia. A limitação mexe com o seu senso de onipotência.

Que coisa espantosa, não? O marxismo vigarista que ainda viceja em nossas universidades — devemos ser o último país do mundo com uma academia ainda pautada por esses cretinos; em Pequim, ninguém mais quer saber — nos afasta de uma verdade insofismável: o mandonismo e a impunidade no Brasil são mais estamentais do que propriamente classistas. Os que se assenhoram do estado, ainda que pela via eleitoral, carregam mais do que as prerrogativas inerentes ao exercício do cargo: levam junto a inimputabilidade e a licença para transgredir leis, algumas delas nem mesmo relacionadas ao exercício de sua função pública.

Lula é a expressão máxima da nova classe social surgida no Brasil, que chamo de “burguesia do capital alheio”. O desassombro, no entanto, com que avança contra as instituições e os limites legais não deriva dessa condição, mas do fato de ter-se tornado um “homem do estado”, um dirigente, um governante, A “elite” pernóstica brasileira não é formada pelos muito ricos, mas pelos “muito impunes”. As chances de um milionário brasileiro responder por seus crimes são muito maiores do que as de um político arcar com as conseqüências de seus atos. Não estou satanizando a política, não! Acho essa conversa um porre! A alternativa aos políticos é a ditadura, é bom deixar claro. Mas é preciso que se exija deles que cumpram a sua função essencial: são eleitos como procuradores e representantes da lei, não para violá-la. Se e quando for necessário mudar um dispositivo legal, a Constituição oferece o caminho.

A trajetória de Lula e sua coleção de agressões às instituições não deixa de ser emblemática. Ele se tornou o herdeiro, para desespero da extrema esquerda, do pensamento revolucionário. No poder, tornou-se beneficiário dos históricos privilégios de casta dos “dirigentes”. Vale dizer: o homem da revolução proletária não estaria preparado nem mesmo para as revoluções burguesas do século 18! O PT se constituiu bem depressa numa nova aristocracia. Aprendeu que, no Brasil, as leis valem para os cavalgados — ricos ou pobres —, mas não para os cavalcantes.

Na terça-feira, o Portal G1 deu uma notícia aparentemente boba. Muitos devem tê-la lido e considerado seu conteúdo muito razoável. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) autorizou que aeronaves do Grupo de Transporte Especial da Aeronáutica, que transportam a presidente da República e outras autoridades federais, utilizem o Aeroporto de Congonhas durante a madrugada. As operações de pouso e decolagem são proibidas entre 23h e 6h por causa do barulho, já que o aeroporto está em área residencial.

O pedido foi feito pela Advocacia Geral da União em dezembro, ainda no governo Lula, segundo o seguinte argumento: “O Chefe de Estado brasileiro tem o direito a mobilidade excepcional, no interesse público de que seus atos sejam praticados com presteza, celeridade e com a segurança necessária à proteção do funcionamento do regime democrático e do sistema republicano”.

Luís Inácio Adams é um exagerado! Nunca ninguém havia pensado que o estado democrático pudesse eventualmente depender de o Aerodilma pousar em Congonhas! Ora, leitor, se preciso, ele pousa até sobre nossas cabeças. Numa excepcionalidade, é claro que o avião poderia recorrer a Congonhas, sem que a AGU tivesse de fazer uma constrangedora defesa, “em tese”, da exceção. Parece que Guarulhos pode ser muito longe quando se é uma autoridade…Tudo no “interesse do país”, justificativa usada pelo megalonanico Celso Amorim para conceder o passaporte especial à parentada de Lula. A lei é para a ralé.

Caminhando para o encerramento
Pode chegar a 1.200 o número de mortos na tragédia do Rio — fala-se em até 400 desaparecidos. Ainda que não seja isso tudo, já há desgraça o bastante. Toda aquela chuva num só dia foi, de fato, uma ocorrência excepcional, que destruiu também áreas consideradas consolidadas. Mas é certo que centenas de vidas teriam sido poupadas só com o cumprimento da lei, compromisso que não foi cumprido pelos ocupantes de áreas irregulares, pelas Prefeituras e pelos governos estadual e federal — este deixou dormitando por cinco anos na gaveta o decreto que cria o centro de prevenção de catástrofes.

Nessa e em outras ocorrências dramáticas, o descumprimento da lei pode custar — e custa! — centenas de vidas. Nos outros casos de que falo, trata-se da vida das instituições.


O Brasil já teve Rei.
O Brasil tem até alguma fé.
Mas ainda não aprendeu a cumprir a lei: na serra, na planície e, sobretudo, no Planalto.

Discurso de Ewald Stadler ao embaixador Turco

15.1.11

Capitalismo e Cristianismo

Capitalismo e Cristianismo


Olavo de Carvalho

Uma tolice notável que circula de boca em boca contra os males do capitalismo é a identificação do capitalista moderno com o usurário medieval, que enriquecia com o empobrecimento alheio.

Lugar-comum da retórica socialista, essa ideiazinha foi no entanto criação autêntica daquela entidade que, para o guru supremo Antonio Gramsci, era a inimiga número um da revolução proletária: a Igreja Católica.

Desde o século XVIII, e com freqüência obsessivamente crescente ao longo do século XIX, isto é, em plena Revolução Industrial, os papas não cessam de verberar o liberalismo econômico como um regime fundado no egoísmo de poucos que ganham com a miséria de muitos.

Mas que os ricos se tornem mais ricos à custa de empobrecer os pobres é coisa que só é possível no quadro de uma economia estática, onde uma quantidade mais ou menos fixa de bens e serviços tem de ser dividida como um bolo de aniversário que, uma vez saído do forno, não cresce mais. Numa tribo de índios pescadores do Alto Xingu, a "concentração do capital" eqüivaleria a um índio tomar para si a maior parte dos peixes, seja na intenção de consumi-los, seja na de emprestá-los a juros, um peixe em troca de dois ou três. Nessas condições, quanto menos peixes sobrassem para os outros cidadãos da taba, mais estes pobres infelizes ficariam devendo ao maldito capitalista índio — o homem de tanga que deixa os outros na tanga.


Foi com base numa analogia desse tipo que no século XIII Sto. Tomás, com razão, condenou os juros como uma tentativa de ganhar algo em troca de coisa nenhuma. Numa economia estática como a ordem feudal, ou mais ainda na sociedade escravista do tempo de Aristóteles, o dinheiro, de fato, não funciona como força produtiva, mas apenas como um atestado de direito a uma certa quantidade genérica de bens que, se vão para o bolso de um, saem do bolso de outro. Aí a concentração de dinheiro nas mãos do usurário só serve mesmo para lhe dar meios cada vez mais eficazes de sacanear o próximo.

Mas pelo menos do século XVIII em diante, e sobretudo no XIX, o mundo europeu já vivia numa economia em desenvolvimento acelerado, onde a função do dinheiro tinha mudado radicalmente sem que algum papa desse o menor sinal de percebê-lo. No novo quadro, ninguém podia acumular dinheiro embaixo da cama para acariciá-lo de madrugada entre delíquios de perversão fetichista, mas tinha de apostá-lo rapidamente no crescimento geral da economia antes que a inflação o transformasse em pó. Se cometesse a asneira de investi-lo no empobrecimento de quem quer que fosse, estaria investindo na sua própria falência.

Sto. Tomás, sempre maravilhosamente sensato, havia distinguido entre o investimento e o empréstimo, dizendo que o lucro só era lícito no primeiro caso, porque implicava participação no negócio, com risco de perda, enquanto o emprestador, que se limitava sentar-se e esperar com segurança, só deveria ter o direito à restituição da quantia emprestada, nem um tostão a mais. Na economia do século XIII, isso era o óbvio — aquele tipo de coisa que todo mundo enxerga depois que um sábio mostrou que ela existe. Mas, no quadro da economia capitalista, mesmo o puro empréstimo sem risco aparente já não funcionava como antes — só que nem mesmo os banqueiros, que viviam essa mudança no seu dia a dia e aliás viviam dela, foram capazes de explicar ao mundo em que é que ela consistia. Eles notavam, na prática, que os empréstimos a juros eram úteis e imprescindíveis ao desenvolvimento da economia, que portanto deviam ser alguma coisa de bom. Mas, não sabendo formular teoricamente a diferença entre essa prática e a do usurário medieval, só podiam enxergar-se a si próprios como usurários, condenados portanto pela moral católica. A incapacidade de conciliar o bem moral e a utilidade prática tornou-se aí o vício profissional do capitalista, contaminando de dualismo toda a ideologia liberal (até hoje todo argumento em favor do capitalismo soa como a admoestação do adulto realista e frio contra o idealismo quixotesco da juventude). Karl Marx procurou explicar o dualismo liberal pelo fato de que o capitalista ficava no escritório, entre números e abstrações, longe das máquinas e da matéria — como se fazer força física ajudasse a solucionar uma contradição lógica, e aliás como se o próprio Karl Marx houvesse um dia carregado algum instrumento de trabalho mais pesado que uma caneta ou um charuto. Mais recentemente, o nosso Roberto Mangabeira Unger, o esquerdista mais inteligente do planeta, e que só não é plenamente inteligente porque continua esquerdista, fez uma crítica arrasadora da ideologia liberal com base na análise do dualismo ético (e cognitivo, como se vê em Kant) que é a raiz da esquizofrenia contemporânea.

Mas esse dualismo não era nada de inerente ao capitalismo enquanto tal, e sim o resultado do conflito entre as exigências da nova economia e uma regra moral cristã criada para uma economia que já não existia mais. O único sujeito que entendeu e teorizou o que estava acontecendo foi um cidadão sem qualquer autoridade religiosa ou prestígio na Igreja: o economista austríaco Eugen Böhm-Bawerk. Este gênio mal reconhecido notou que, no quadro do capitalismo em crescimento, a remuneração dos empréstimos não era apenas uma conveniência prática amoral, mas uma exigência moral legítima. Ao emprestar, o banqueiro simplesmente trocava dinheiro efetivo, equivalente a uma quota calculável de bens na data do empréstimo, por um dinheiro futuro que, numa economia em mudança, podia valer mais ou valer menos na data da restituição. Do ponto de vista funcional, já não existia mais, portanto, diferença positiva entre o empréstimo e o investimento de risco. Daí que a remuneração fosse tão justa no primeiro caso como o era no segundo. Tanto mais justa na medida mesma em que o liberalismo político, banindo a velha penalidade da prisão por dívidas, deixava o banqueiro sem a máxima ferramenta de extorsão dos antigos usurários.

Um discípulo de Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, explicou mais detalhadamente essa diferença pela intervenção do fatortempo na relação econômica: o emprestador troca dinheiro atual por dinheiro potencial, e pode fazê-lo justamente porque, tendo concentrado capital, está capacitado a adiar o gasto desse dinheiro, que o prestamista por seu lado necessita gastar imediatamente para tocar em frente o seu negócio ou sua vida pessoal. Von Mises foi talvez o economista mais filosófico que já existiu, mas, ainda um pouco embromado por uns resíduos kantianos, nem por um instante pareceu se dar conta de que estava raciocinando em termos rigorosamente aristotélico-escolásticos: o direito à remuneração provém de que o banqueiro não troca simplesmente uma riqueza por outra, mas troca riqueza em ato por riqueza em potência, o que seria rematada loucura se o sistema bancário, no seu conjunto, não estivesse apostando no crescimento geral da economia e sim apenas no enriquecimento da classe dos banqueiros. A concentração do capital para financiar operações bancárias não é portanto um malefício que só pode produzir algo de bom se for submetido a "finalidades sociais" externas (e em nome delas policiado), mas é, em si e por si, finalidade socialmente útil e moralmente legítima. Sto. Tomás, se lesse esse argumento, não teria o que objetar e certamente veria nele um bom motivo para a reintegração plena e sem reservas do capitalismo moderno na moral católica. Mas Sto. Tomás já estava no céu e, no Vaticano terrestre, ninguém deu sinal de ter lido Böhm-Bawerk ou Von Mises até hoje. Daí a contradição grosseira das doutrinas sociais da Igreja, que, celebrando da boca para fora a livre iniciativa em matéria econômica, continuam a condenar o capitalismo liberal como um regime baseado no individualismo egoísta, e terminam por favorecer o socialismo, que agradece essa colaboração instituindo, tão logo chega ao poder, a perseguição e a matança sistemática de cristãos, isto é, aquilo que o Dr. Leonardo Boff, referido-se particularmente a Cuba, denominou "o Reino de Deus na Terra". Daí, também, que o capitalista financeiro (e mesmo, por contaminação, o industrial), se ainda tinha algo de cristão, continuasse a padecer de uma falsa consciência culpada da qual só podia encontrar alívio mediante a adesão à artificiosa ideologia protestante da "ascese mundana" (juntar dinheiro para ir para o céu), que ninguém pode levar a sério literalmente, ou mediante o expediente ainda mais postiço de fazer majestosas doações em dinheiro aos demagogos socialistas, que, embora sejam ateus ou no máximo deístas, sabem se utilizar eficazmente da moral católica como instrumento de chantagem psicológica, e ainda são ajudados nisto — porca miséria! — pela letra e pelo espírito de várias encíclicas papais.

Uma das causas que produziram o trágico erro católico na avaliação do capitalismo do século XIX foi o trauma da Revolução Francesa, que, roubando e vendendo a preço vil os bens da Igreja, enriqueceu do dia para a noite milhares de arrivistas infames e vorazes, que instauraram o império da amoralidade cínica, o capitalismo selvagem tão bem descrito na obra de Honoré de Balzac. Que isso tenha se passado logo na França, "filha dileta da Igreja", marcou profundamente a visão católica do capitalismo moderno como sinônimo de egoísmo anticristão. Mas seria o saque revolucionário o procedimento capitalista por excelência? Se o fosse, a França teria evoluído para o liberal-capitalismo e não para o regime de intervencionismo estatal paralisante que a deixou para sempre atrás da Inglaterra e dos Estados Unidos na corrida para a modernidade. Um governo autoritário que mete a pata sobre as propriedades de seus adversários para distribuí-las a seus apaniguados, é tudo, menos liberal-capitalista: é, já, o progressismo intervencionista, no qual, por suprema ironia, a Igreja busca ainda hoje enxergar um remédio contra os supostos males do liberal-capitalismo, que por seu lado, onde veio a existir — Inglaterra e Estados Unidos —, nunca fez mal algum a ela e somente a ajudou, inclusive na hora negra da perseguição e do martírio que ela sofreu nas mãos dos comunistas e de outros progressistas estatizantes, como os revolucionários do México que inauguraram nas Américas a temporada de caça aos padres. O caso francês, se algo prova, é que o "capitalismo selvagem" floresce à sombra do intervencionismo estatal, e não do regime liberal (coisa aliás arquiprovada, de novo, pelo cartorialismo brasileiro). Insistindo em dizer o contrário, movida pela aplicação extemporânea de um princípio tomista e vendo no estatismo francês o liberal-capitalismo que era o seu inverso, a Igreja fez como essas mocinhas de filmes de suspense, que, fugindo do bandido, pedem carona a um caminhão... dirigido pelo próprio. A incapacidade de discernir amigos e inimigos, o desespero que leva o pecador a buscar o auxílio espiritual de Satanás, são marcas inconfundíveis de burrice moral, intolerável na instituição que o próprio Cristo designou Mãe e Mestra da humanidade. Errare humanum est, perseverare diabolicum: a obstinação da Igreja em suas reservas contra o liberal-capitalismo e em sua conseqüente cumplicidade com o socialismo é talvez o caso mais prolongado de cegueira coletiva já notado ao longo de toda a História humana. E quando em pleno século XIX o papa já assediado de contestações dentro da Igreja mesma proclama sua própria infalibilidade em matéria de moral e doutrina, isto não deixa de ser talvez uma compensação psicológica inconsciente para a sua renitente falibilidade em matéria econômica e política. Daí até o "pacto de Metz", em que a Igreja se ajoelhou aos pés do comunismo sem nada lhe exigir em troca, foi apenas um passo. Ao confessar que, com o último Concílio, "a fumaça de Satanás entrara pelas janelas do Vaticano", o papa Paulo VI esqueceu de observar que isso só podia ter acontecido porque alguém, de dentro, deixara as janelas abertas.

Que uma falsa dúvida moral paralise e escandalize as consciências, introduzindo nelas a contradição aparentemente insolúvel entre a utilidade prática e o bem moral, e, no meio da desorientação resultante, acabe por levar enfim a própria Igreja a tornar-se cúmplice do mais assassino e anticristão dos regimes já inventados —eis aí uma prestidigitação tão inconfundivelmente diabólica, que é de espantar que ninguém, na Igreja, tenha percebido a urgência de resolver essa contradição no interior mesmo da sua equação lógica, como o fizeram Böhm-Bawerk e von Mises (cientistas alheios a toda preocupação religiosa). Mais espantoso ainda é que em vez disso todos os intelectuais católicos, papas inclusive, tenham se contentado com arranjos exteriores meramente verbais, que acabaram por deixar no ar uma sugestão satânica de que o socialismo, mesmo construído à custa do massacre de dezenas de milhões de cristãos, é no fundo mais cristão que o capitalismo.

Não há alma cristã que possa resistir a um paradoxo desse tamanho sem ter sua fé abalada. Ele foi e é a maior causa de apostasias, o maior escândalo e pedra de tropeço já colocado no caminho da salvação ao longo de toda a história da Igreja.

Arrancar da nossa alma essa sugestão hipnótica, restaurar a consciência de que o capitalismo, com todos os seus inconvenientes e fora de toda intervenção estatal pretensamente corretiva, é em si e por essência mais cristão que o mais lindinho dos socialismos, eis o dever número um dos intelectuais liberais que não queiram colaborar com o farsesco monopólio esquerdista da moralidade, trocando sua alma pelo prato de lentilhas da eficiência amoral.

Original aqui.

13.1.11

Guia politicamente incorreto para Política






Apenas o seu típico aspirante a assassino

Artigo elucidador sobre o assassinato em massa ocorrido no Arizona, que vem sendo erroneamente atribuído ao acirramento da disputa política. Íntegra com os links para os artigos aqui.

Just Your Typical Would-Be Assassin
Tuscon shooter Jared Loughner fits the profile of a killer. But not in the way you might think.


“Students of assassination in the U.S. have generally seen assassins and attackers of political leaders either as possessing ‘political’ motives or as being ‘deranged,’” notes a 1999 comprehensive study [PDF] of the 83 known and would-be attackers in modern American history. “This is a narrow and inaccurate view of assassination."

“There is no profile of an American assassin,” forensic psychologist Robert Fein and his co-author Bryan Vossekuil, former head of the Secret Service’s National Threat Assessment Center, emphasize. But the Tucson attacker, Jared Loughner, is pretty typical. Of the 83 attackers analyzed, 71 were male, 63 were white, 41 had never married, 47 had no children, about half had some college education, and about half were unemployed at the time of their attacks. “Almost all subjects had histories of grievances and resentments,” note Fein and Vossekuil.

Politics apparently plays very little role in most attacks and would-be attacks against public officials. The researchers found that “fewer than a tenth of subjects who acted alone were involved with militant or radical organizations at the time of their attack or near-lethal approach.” Instead, they seek notoriety, revenge for perceived wrongs, death at the hands of law enforcement, to bring attention to a perceived problem, to save the country or the world, to achieve a special relationship with the target, to make money, or to bring about political change. Less than a quarter of the attackers developed escape plans. In fact, more than a third wished or expected to die during their attack.

However, “more than a fourth had a history of interest in militant or radical organizations and beliefs.” For example, radical leftwing ideology motivated presidential attackers like Lee Harvey Oswald andSara Jane Moore, while rightwing views inspired members of The Order to kill liberal radio talk show host Alan Berg. Though Loughner has a digital trail of a weird assortment of fringey views, none of them seems to have motivated the attack.

Moreover, diagnosed mental illness is not a good indicator of who might become an assassin. Fein and Vossekuil find that “fewer than half of American assassins, attackers, and near-lethal approachers since 1949 who chose public officials or figures as their primary targets exhibited symptoms of mental illness at the time of their attacks or near-lethal approaches.” Not surprisingly, the more mentally disorganized an attacker, the less likely their attack was to succeed.

The researchers note that 46 of the attackers and would-be attackers in their study had been evaluated by a mental health professional at some point in their lives, but only 16 had been treated for mental health problems in the year prior to their attacks. They acknowledge that a greater percentage of attackers have been mentally ill than have been members of the general public, but warn that “it is a mistake to automatically assume...that focus on the presence or absence of mental illness is critical to determining the risk of violence to a public official or figure that a given individual may pose.”

Fein and Vossekuil report that 31 of the attackers had experienced an episode of serious depression and 29 had threatened to commit suicide at some point in their lives. In addition, in the year before their attacks, half of them had experienced a major loss or life change including marital problems, personal illness, death of a family member, or failure at school or work.

Recent news reports strongly suggest that Loughner was experiencing some form of mental illness, but he was sufficiently organized to plan and carry out the attack. Loughner’s defense lawyer may well attempt to argue mental illness as a defense. Fein and Vossekuil, however, observe that of the previous attackers who went to trial only John Hinckley, would-be assassin of President Ronald Reagan, was found to lack criminal responsibility by reason of mental illness. (Hinckley was trying to impress actress Jodie Foster.) To the extent the public gets to hear from Loughner it will likely turn out that he was chiefly seeking notoriety and possibly death, rather than reacting to supposedly vitriolic political rhetoric.

Most interestingly, the researchers found that “no assassin or attacker communicated a direct threat about their target to the target or to a law enforcement agency before their attack or near-lethal approach (emphasis theirs).” Consequently, they assert, “The idea that the persons who pose the greatest risks to public officials and public figures are those who make explicit threats is a myth.” On the other hand, those who do attack often hint to associates or family members about their plans. In addition, perpetrators frequently keep diaries or notes outlining their intentions.

A 2004 review article [PDF] of studies dealing with threats and attacks reported that research evaluating a selection of threatening letters sent to members of Congress found that “the presence of any threat in a letter was associated with a lower risk of approach.” In other words: Big talk means no action. In addition, the review found that people who made contact with and later approached members of Congress were predominantly engaged in “help seeking” that “involved personal issues, rather than ideological ones.”

In light of these findings, Jared Loughner, perpetrator of the horrific Tucson massacre and would-be assassin of Rep. Gabrielle Giffords (D-Ariz.), is pretty much the usual suspect when it comes to attacks on public officials. He is an unmarried, childless, unemployed white male with no readily discernible political motivations who just experienced a major life failure when he was kicked out of community college. At this point Loughner does not appear to have been associated with any political organization. Investigators have apparently found an envelope in a safe at Loughner’s house inscribed with the words, “my assassination.” While Loughner had previous contact with Giffords at a public meeting in 2007, as far as is currently known, he made no direct threats against the congresswoman.

Fein and Vossekuil report that there were only five attacks against members of Congress between 1949 and 1996. (Presumably this includes the 1954 incident in which a group of Puerto Rican nationalistsshot five congressmen from the House gallery, all of whom lived.) The attack on Giffords increases the number of incidents to six. In the modern era, only two members of Congress have been assassinated, Sen. Robert Kennedy (D-N.Y.) when he was seeking the Democratic presidential nomination in 1968, and Rep. Leo Ryan (D-Calif.) in 1978 when he was visiting the Jonestown religious cult in Guyana. Fein and Vossekuil report that there were only four attacks against federal judges between 1949 and 1996. Only one federal judge was killed between 1789 and 1979, while three were killed between 1979 and 1989. Now the murder of Judge John Roll during the Tucson massacre must be added to the list. The attack on Giffords increases the number of incidents to six.

Finally, attacking any innocent person is abhorrent and the perpetrators must be severely punished. In my opinion, the relatively few attacks on public officials (fewer than 80 in 60 years with about a third of those aimed at the president) provide no real justification for erecting the modern massive security infrastructure in which government officials and buildings are being increasingly closed off to citizens. I admire Rep. Giffords' willingness to meet and talk with citizens where they live. I hope for her speedy recovery.

Ronald Bailey is Reason's science correspondent. His book Liberation Biology: The Scientific and Moral Case for the Biotech Revolution is now available from Prometheus Books.

Podcast do Olavo de Carvalho 10/01/10

6.1.11

Por que os piores chegam ao topo

Capítulo 10 do livro "O caminho da servidão" do brilhante Friedrich August von Hayek. A obra, dedicada aos socialistas, refuta definitivamente qualquer simpatia que se possa ter por essa ideologia homicida.Vale a pena ler a obra inteira.


POR QUE OS PIORES CHEGAM AO PODER

"Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta. " (Lord Acton)


Analisaremos agora uma ideia que, se de um lado serve de consolo para muitos que consideram inevitável o advento do totalitarismo, de outro enfraquece sobremodo a resistência dos que a ele se oporiam com todas as forças se lhe compreendessem a natureza. Trata-se da ideia de que os aspectos mais repelentes dos regimes totalitários se devem à casualidade histórica de esses regimes terem sido estabelecidos por canalhas e bandidos. Se, na Alemanha, a criação de um regime totalitário levou ao poder os Streichers e Killingers, os Leys e Heines, os Himmlers e Heydrichs - argumenta-se -, isso sem dúvida poderá provar a perversidade do caráter alemão, mas não que a ascensão de tais homens seja consequência inevitável de um regime totalitário. Por que não seria possível que o mesmo sistema, se necessário à consecução de objetivos importantes, fosse dirigido por indivíduos honestos para o bem da comunidade?


Não devemos iludir-nos supondo que todas as pessoas de bem são forçosamente democratas ou desejam fazer parte do governo. Muitos prefeririam confiá-lo a alguém que reputam mais competente. Embora isso possa ser importante, não há erro ou desonra em aprovar uma ditadura dos bons. O totalitarismo, ouve-se dizer, é um sistema poderoso tanto para o bem como para o mal, e o fim para o qual é usado depende inteiramente dos ditadores. Aqueles que julgam não ser o sistema que cumpre recear, e sim o perigo de que ele venha a ser dirigido por maus indivíduos, poderiam até ser tentados a prevenir esse perigo fazendo com que ele fosse estabelecido antes por homens de bem. Não há dúvida de que um sistema "fascista" inglês ou americano diferiria muito dos modelos italiano ou alemão; por certo, se a transição fosse efetuada sem violência, poderíamos ter esperanças de que surgisse entre nós um líder melhor. E, se eu tivesse de viver sob um regime fascista, preferiria indubitavelmente um que fosse dirigido por ingleses ou americanos a qualquer outro. Entretanto, isso não quer dizer que, julgado pelos padrões atuais, um sistema fascista inglês viesse no fim a revelar-se muito diferente ou muito menos intolerável do que seus protótipos. Há razões de sobra para se crer que os aspectos que consideramos mais detestáveis nos sistemas totalitários existentes não são subprodutos acidentais mas fenômenos que, cedo ou tarde, o totalitarismo produzirá inevitavelmente. Assim como o estadista democrata que se propõe a planejar a vida econômica não tardará a defrontar-se com o dilema de assumir poderes ditatoriais ou abandonar seu plano, também o ditador totalitário logo teria de escolher entre o fracasso e o desprezo à moral comum. É por essa razão que os homens inescrupulosos têm mais probabilidades de êxito numa sociedade que tende ao totalitarismo. Quem não percebe essa verdade ainda não mediu toda a vastidão do abismo que separa o totalitarismo dos regimes liberais, a profunda diferença entre a atmosfera moral do coletivismo e a civilização ocidental, essencialmente individualista.


O "embasamento moral do coletivismo" foi, é claro, muito debatido no passado; mas o que nos interessa em nosso estudo não é sua base moral e sim seus resultados morais. Nos debates habituais sobre os aspectos éticos do coletivismo pergunta-se se este é exigido pelas convicções morais existentes, ou se devem existir certas convicções morais para que o coletivismo produza os resultados esperados. A questão que estudaremos, entretanto, é: que atitudes morais serão geradas por uma organização coletivista da sociedade, e por que ideias morais tal sociedade tenderá a ser dirigida? A interação da moral e das instituições poderá fazer com que a ética resultante do coletivismo seja totalmente diversa dos ideais morais que levam a exigir a implantação desse mesmo coletivismo. Embora nos inclinemos a pensar que, como o desejo de um sistema coletivista nasce de elevados motivos morais, em tal sistema se desenvolverão as mais altas virtudes, não existe, na realidade, nenhuma razão para que qualquer sistema estimule necessariamente aquelas atitudes que concorrem para o fim a que ele se destina. As ideias morais dominantes dependerão em parte das qualidades que conduzem os indivíduos ao sucesso num sistema coletivista ou totalitário e, em parte, das exigências do mecanismo totalitário.

Devemos agora voltar por um momento ao estágio que precede a supressão das instituições democráticas e a criação de um regime totalitário. Nesse estágio, a exigência geral de uma ação governamental rápida e decidida torna-se o elemento dominante da situação, enquanto a insatisfação com o curso lento e trabalhoso dos processos democráticos faz com que o objetivo seja a ação em si. É então que o homem ou o partido que parecem bastante fortes ou resolutos para "fazerem as coisas funcionar'' exercem maior sedução. "Forte", neste sentido, não indica apenas uma maioria numérica, pois o povo está insatisfeito justamente com a ineficácia das maiorias parlamentares. O que as pessoas procuram é um homem que goze de sólido apoio, de modo a inspirar confiança quanto à sua capacidade de realizar o que pretende. E aqui entra em cena o novo tipo de partido, organizado em moldes militares.

Nos países da Europa Central, os partidos socialistas já haviam familiarizado as massas com organizações políticas de caráter semi-militar, que tinham por objetivo absorver tanto quanto possível a vida privada dos seus membros. Para conferir um poder esmagador a um grupo, bastava estender um pouco mais o mesmo princípio, buscando a força não no imenso número de votos garantido em eleições ocasionais, mas no apoio absoluto e irrestrito de um grupo menor, porém perfeitamente organizado. Para conseguir impor um regime totalitário a toda uma nação, o líder deve em primeiro lugar reunir à sua volta um grupo disposto a submeter-se voluntariamente à disciplina totalitária que ele pretende aplicar aos outros pela força.

Embora os partidos socialistas tivessem poder político suficiente para obter o que desejassem, desde que resolvessem empregar a força, relutaram em fazê-lo. Sem o saber, tinham assumido uma tarefa que só poderia ser executada por homens implacáveis, prontos a desprezar as barreiras da moral reinante. 


Muitos reformadores sociais aprenderam, no passado, que o socialismo só pode ser posto em prática por métodos que seriam condenados pela maioria dos socialistas. Os velhos partidos socialistas sentiam-se inibidos por seus ideais democráticos; não possuíam a insensibilidade necessária à execução da tarefa por eles escolhida. É importante notar que, tanto na Alemanha como na Itália, o êxito do fascismo foi precedido pela recusa dos partidos socialistas a assumir as responsabilidades do governo. Repugnou-lhes empregar os métodos que eles próprios haviam apontado. Ainda esperavam pelo milagre de um acordo da maioria em torno de um plano especial para a organização de toda a sociedade. Outros já haviam aprendido que, numa sociedade planificada, não se trata mais de saber sobre o que concorda a maioria do povo, mas qual é o maior grupo cujos membros encontraram um grau de acordo suficiente para tornar possível a direção unificada de todos os assuntos públicos; ou, caso não exista nenhum grupo bastante numeroso para impor suas ideias, de que forma e por quem ele pode ser criado.

Há três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de ideias bastante homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim pelos piores elementos de qualquer sociedade. De acordo com os padrões hoje aceitos, os princípios que presidiriam à seleção de tal grupo seriam quase inteiramente negativos.

Em primeiro lugar, é provavelmente certo que, de modo geral, quanto mais elevada a educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada hierarquia de valores. Disso resulta que, se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os instintos mais primitivos e "comuns". Isso não significa que a maioria do povo tenha padrões morais baixos; significa apenas que o grupo mais amplo cujo valores são semelhantes é constituído por indivíduos que possuem padrões inferiores. É, por assim dizer, o mínimo denominador comum que une o maior número de homens. Quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte para impor aos demais suas ideias sobre os valores da vida, jamais serão aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a "massa" no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos independentes. 

Se, contudo, um ditador em potencial tivesse de contar apenas com aqueles cujos instintos simples e primitivos são muito semelhantes, o número destes não daria peso suficiente às suas pretensões. Seria preciso aumentar-lhes o número, convertendo outros ao mesmo credo simples.


A esta altura entra em jogo o segundo princípio negativo da seleção: tal indivíduo conseguirá o apoio dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes convicções próprias mas estão prontos a aceitar um sistema de valores previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante estrépito e insistência. Serão, assim, aqueles cujas ideias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as fileiras do partido totalitário.

O terceiro e talvez mais importante elemento negativo da seleção está relacionado com o esforço do demagogo hábil por criar um grupo coeso e homogêneo de prosélitos. Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos homens concordarem sobre um programa negativo - o ódio a um inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação -do que sobre qualquer plano positivo. A antítese "nós" e "eles", a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa político mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas. Do seu ponto de vista, isso tem a vantagem de lhes conferir mais liberdade de ação do que qualquer programa positivo. O inimigo, seja ele interno, como o "judeu" ou o 
"kulak", seja externo, parece constituir uma peça indispensável no arsenal do líder totalitário. 
Se na Alemanha o judeu se tornou o inimigo, cedendo em seguida o lugar às "plutocracias", isso foi decorrência do sentimento anticapitalista em que se baseava todo o movimento, o mesmo acontecendo em relação à escolha do kulak na Rússia. Na Alemanha e na Áustria, o judeu chegara a ser encarado como o representante do capitalismo porque a antipatia tradicional votada por vastas classes da população às atividades comerciais tornara tais atividades mais acessíveis a um grupo praticamente excluído das ocupações mais respeitadas. É a velha história: a raça alienígena, admitida apenas nas profissões menos nobilitantes, torna-se objeto de ódio ainda mais acirrado precisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha, o anti-semitismo e o anticapitalismo terem a mesma origem é de grande importância para a compreensão do que tem acontecido naquele país, embora os observadores estrangeiros poucas vezes se dêem conta disso.

Considerar a tendência universal da política coletivista ao nacionalismo como decorrência exclusiva da necessidade de um apoio sólido seria negligenciar outro fator não menos significativo. Com efeito, é questionável que se possa conceber com realismo um programa coletivista que não atenda aos interesses de um grupo limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. A ideia de uma comunhão de propósitos e interesses com os próprios semelhantes parece pressupor maior similaridade de ideias e pontos de vista do que aquela que existe entre os homens na qualidade de simples seres humanos. Se não podemos conhecer pessoalmente todos os outros componentes do nosso grupo, eles terão de ser pelo menos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão de pensar e falar do mesmo modo e sobre os mesmos assuntos, para que nos possamos identificar com eles. O coletivismo em proporções mundiais parece inconcebível, a não ser para atender aos interesses de uma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitaria problemas, não só de natureza técnica mas sobretudo moral, que nenhum dos nossos socialistas estaria disposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem direito a uma parcela igual da renda atualmente proporcionada pelos recursos financeiros do país, assim como ao controle do emprego desses recursos, porque eles resultam da exploração, pelo mesmo princípio todos os hindus teriam direito não só à renda mas também ao uso de uma parcela proporcional do capital britânico.

Que socialistas, porém, pensam de fato em repartir de maneira equitativa, entre toda a população da terra, os atuais recursos de capital? Para todos eles o capital pertence, não à humanidade, mas à nação - embora, mesmo no âmbito da nação, poucos ousem sustentar que as regiões mais ricas devem ser privadas de "seus" bens de capital para auxiliar as regiões mais pobres. Os socialistas não estão dispostos a conceder ao estrangeiro aquilo que proclamam como um dever para com os seus concidadãos. De um ponto de vista coletivista coerente, os direitos dos países pobres a uma nova divisão do mundo são de todo justificados - embora, se fossem aplicados com lógica, aqueles que os reivindicam com maior insistência acabassem quase tão prejudicados quanto as nações mais ricas. Têm, por conseguinte, o cuidado de não fundamentar suas exigências em princípios igualitários, mas numa pretensa capacidade superior de organizar outros povos.

Uma das contradições inerentes à filosofia coletivista é que, embora baseada na moral humanista aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostra praticável no interior de um grupo relativamente pequeno. Enquanto permanece teórico, o socialismo é internacionalista; mas ao ser posto em prática, na Alemanha ou na Rússia, torna-se violentamente nacionalista. Esta é uma das razões por que o "socialismo liberal", tal como o imagina a maioria das pessoas no mundo ocidental, é apenas teórico, ao passo que a prática do socialismo é em toda parte totalitária. No coletivismo não há lugar para o amplo humanitarismo do liberal, mas apenas para o estreito particularismo do totalitário.

Se a "comunidade" ou o Estado têm prioridade sobre os indivíduos, se possuem objetivos próprios superiores aos destes e deles independentes, só os indivíduos que trabalham para tais objetivos podem ser considerados membros da comunidade. Como conseqüência necessária dessa perspectiva, uma pessoa só é respeitada na qualidade de membro do grupo, isto é, apenas se coopera para os objetivos comuns reconhecidos, e toda a sua dignidade deriva dessa cooperação, e não da sua condição de ser humano. Os próprios conceitos de humanidade e, por conseguinte, de qualquer forma de internacionalismo são produtos exclusivos da atitude individualista e não podem existir num sistema filosófico coletivista.


Além do fato fundamental de que a comunidade coletivista só pode chegar até onde exista ou possa ser estabelecida uma unidade de propósitos individuais, vários elementos contribuem para fortalecer a tendência do coletivismo a tornar-se particularista e exclusivista. Destes, um dos mais importantes é que o desejo de identificação do indivíduo com um grupo resulta com frequência de um sentimento de inferioridade, e por isso tal desejo só será satisfeito se a qualidade de membro do grupo lhe conferir alguma superioridade sobre os que a este não pertencem. Às vezes, ao que tudo indica, o próprio fato de esses instintos violentos que o indivíduo é obrigado a refrear no seio do grupo poderem ser liberados numa ação coletiva contra os estranhos constitui mais um incentivo para fusão de sua personalidade com a do grupo. Uma profunda verdade está expressa no título do livro de Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society (O homem moral e a sociedade imoral) - embora seja difícil aceitar conclusões a que chega a sua tese. Na verdade, como diz ele em outra obra, "o homem moderno tende a se considerar uma pessoa de moral elevada por ter delegado seus vícios a grupos cada vez mais numerosos". Agir no interesse de um grupo parece libertar os homens de muitas restrições morais que regem seu comportamento como indivíduos dentro do grupo.

A atitude de muitos planejadores de nítida oposição ao internacionalismo explica-se também pelo fato de que, no mundo atual, todos os contatos exteriores de um grupo constituem obstáculos ao planejamento efetivo da esfera em que este pode ser empreendido. Não é, pois, mera coincidência se, conforme descobriu com pesar o organizador de um dos mais abrangentes estudos coletivos sobre o planejamento, "os 'planejadores' são, em sua maioria, nacionalistas militantes".

As propensões nacionalistas e imperialistas dos planejadores socialistas - muito mais comuns do que em geral se admite - nem sempre são tão flagrantes como no caso dos Webb e de alguns outros fabianos primitivos, nos quais o entusiasmo pela planificação se somava, de modo característico, à veneração para com as grandes e poderosas unidades políticas e ao desprezo pelos pequenos Estados. Referindo-se aos Webb na ocasião em que os conheceu, há quarenta anos, afirmava o historiador Elie Halévy que seu socialismo era profundamente antiliberal. Não odiavam os conservadores, eram até muito tolerantes com eles; entretanto, mostravam-se implacáveis para com o liberalismo gladstoniano. Era no tempo da guerra dos bôeres e tanto os liberais quanto aqueles que começavam a constituir o Partido Trabalhista haviam-se alinhado aos bôeres contra o imperialismo britânico, em nome da liberdade e da humanidade. Mas os dois Webb e seu amigo Bernard Shaw não os apoiaram. Eram ostentosamente imperialistas. A independência das pequenas nações poderia ter alguma importância para um individualista liberal mas, para coletivistas como eles, nada significava. Ainda ouço Sidney Webb a explicar-me que o futuro pertence às grandes nações administrativas, onde os funcionários governam e a polícia mantém a ordem.

Em outra parte, Halévy cita a afirmação de Bernard Shaw, mais ou menos da mesma época, de que "o mundo pertence necessariamente aos Estados grandes e poderosos, e os pequenos devem ser incorporados, a eles ou esmagados e aniquilados".

Citei por extenso essas passagens, que não deveriam surpreender num relato sobre os precursores alemães do nacional-socialismo, porque apresentam um exemplo muito característico da glorificação do poder que facilmente conduz do socialismo ao nacionalismo e que tanto influencia as concepções éticas de todos os coletivistas. No que se refere aos direitos das pequenas nações, Marx e Engels pouco diferiam da maioria dos outros coletivistas coerentes, e as opiniões que ambos expressaram ocasionalmente a respeito dos tchecos ou dos poloneses assemelham-se às dos nacional-socialistas contemporâneos.

Enquanto para os grandes filósofos sociais individualistas do século XIX, como Lord Acton ou Jacob Burckhardt, e mesmo para socialistas contemporâneos como Bertrand Russell,que herdaram a tradição liberal, o poder sempre se afigurou o supremo mal, para o coletivista puro ele é um fim em si mesmo. O próprio desejo de organizar a vida social segundo um plano unitário nasce basicamente da ambição de poder, mas não apenas disso, conforme destacou Russell com propriedade. Esse desejo resulta sobretudo do fato de que, para realizar seu objetivo, os coletivistas precisam criar um poder de uma magnitude jamais vista até hoje - poder exercido por alguns homens sobre os demais - e de que seu êxito dependerá do grau de poder alcançado.

Isto permanece válido ainda que muitos socialistas liberais orientem suas ações pela desastrosa ilusão de que, privando os indivíduos do poder que possuem num sistema individualista e transferindo-o à sociedade, lograrão acabar com o próprio poder. O que todos aqueles que usam esse argumento esquecem é que, concentrando-se o poder de modo a empregá-lo a serviço de um plano único, ele não será apenas transferido mas aumentado a um grau infinito; e que, enfeixando-se nas mãos de um só grupo uma autoridade antes exercida por muitos de forma independente, cria-se um poder infinitamente maior - tão amplo que quase chega a tornar-se um outro gênero de poder.

É de todo errôneo afirmar, como por vezes se faz, que o grande poder exercido por uma comissão de planejamento central "não seria maior do que o poder exercido conjuntamente pelas diretorias das empresas privadas". Numa sociedade baseada na concorrência, ninguém exerce uma fração sequer do poder que uma comissão planejadora socialista concentraria nas mãos; e se ninguém o pode empregar de modo intencional, não passa de abuso de linguagem afirmar que este se encontra nas mãos de todos os capitalistas reunidos. Falar do "poder conjuntamente exercido pelas diretorias das empresas privadas" é apenas manipular palavras, se essas diretorias não se unem para uma ação comum -o que significaria, é evidente, o fim da concorrência e a criação de uma economia planificada. Fracionar ou descentralizar o poder corresponde, forçosamente, a reduzir a soma absoluta de poder, e o sistema de concorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo, pela descentralização, o poder exercido pelo homem sobre o homem.

Já vimos como a separação dos objetivos políticos e dos objetivos econômicos representa uma garantia essencial da liberdade individual e como, em conseqüência, tal separação é atacada por todos os coletivistas. Devemos acrescentar agora que a "substituição do poder econômico pelo político", tão demandada hoje em dia, significa necessariamente a substituição de um poder sempre limitado por um outro ao qual ninguém pode escapar. Embora possa constituir um instrumento de coerção, o chamado poder econômico nunca se torna, nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue da escravidão.

Das duas características principais de todo sistema coletivista -a necessidade de um sistema de objetivos aceito por todos os membros do grupo e o desejo imperioso de conferir ao grupo o máximo de poder para realizar tais objetivos - brota um sistema moral definido, que em certos pontos coincide e em outros se contrapõe violentamente ao nosso. Dele difere, entretanto, num detalhe que torna questionável podermos aplicar-lhe o termo "moral'': tal sistema não deixa à consciência individual a liberdade de aplicar suas regras próprias, nem mesmo conhece quaisquer regras gerais cuja prática seja exigida ou permitida ao indivíduo em todas as circunstâncias. Isso torna a moral coletivista tão diferente daquilo que conhecemos como moral que é difícil encontrar nela qualquer princípio - o que, no entanto, ela possui. 


A diferença de princípio é praticamente a mesma que já consideramos em relação ao Estado de Direito. Como o Direito formal, as regras da ética individualista são gerais e absolutas, por mais imprecisas que possam parecer sob certos aspectos. Prescrevem ou proíbem um tipo geral de ação, sem levar em conta se num caso específico o objetivo último é bom ou mau. Trapacear ou roubar, torturar ou trair segredos é considerado mau, apresentem ou não conseqüências prejudiciais em determinado caso. E sua maldade intrínseca não se altera, mesmo que em dadas circunstâncias ninguém venha a sofrer por isso, e mesmo que tais ações tenham sido. praticadas em nome de um propósito elevado. Embora por vezes sejamos forçados a escolher entre dois males, estes não deixam por isso de ser males.

Na ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral. Na ética coletivista, torna-se a regra suprema; não há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto a fazer, desde que contribua para o "bem da comunidade", porque o "bem da comunidade" é para ele o único critério que justifica a ação. A "razão de Estado", em que a ética coletivista encontrou a sua formulação mais explícita, não conhece outros limites que não os da conveniência - a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista. E o que a "razão de Estado" afirma no tocante às relações entre diferentes países aplica-se também às relações entre diferentes indivíduos no Estado coletivista. Não pode haver limites para aquilo que o cidadão desse Estado deve estar pronto a fazer, nenhum ato que a consciência o impeça de praticar, desde que seja necessário à consecução de um objetivo que a comunidade impôs a si mesma ou que os superiores lhe ordenem. 

Dessa ausência de normas absolutas e formais na ética coletivista não se infere, naturalmente, que a comunidade não estimule certos hábitos úteis do indivíduo, e que não condene outros. Ao contrário, ela se interessará muito mais pelos hábitos individuais de vida do que uma comunidade individualista. Ser membro útil de uma sociedade coletivista requer qualidades muito precisas, as quais devem ser fortalecidas por uma prática constante. A razão por que designamos essas qualidades como "hábitos úteis", uma vez que não é possível denominá-las virtudes morais, é que nunca se permitiria ao indivíduo colocar essas regras acima de quaisquer ordens positivas ou deixar que se tornassem um obstáculo à realização dos objetivos concretos da comunidade. Elas apenas servem para preencher as lacunas deixadas pelas ordens diretas ou pela indicação de finalidades concretas. Jamais, entretanto poderão justificar um conflito com a decisão da autoridade.

As diferenças entre as virtudes que continuarão a ser valorizadas num sistema coletivista e aquelas que virão a desaparecer são bem elucidadas por uma comparação entre as virtudes atribuídas aos alemães, ou melhor, ao "prussiano típico", mesmo por seus piores inimigos, e aquelas que lhes são negadas pela opinião geral, mas que o povo inglês, com alguma razão, se orgulhava de possuir em alto grau. Poucos deixarão de admitir que os alemães, em geral, são laboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos a ponto de se mostrarem insensíveis, conscienciosos e coerentes em qualquer tarefa á qual se dedicam; que possuem um acentuado senso de ordem, dever e estrita obediência à autoridade, e que muitas vezes dão provas de grande capacidade para o sacrifício pessoal e de admirável coragem diante do perigo físico. Essas virtudes fazem do alemão um instrumento eficiente na execução de uma 
tarefa prescrita, e todas elas foram cuidadosamente ensinadas no velho Estado prussiano e no novo Reich, também sob o domínio prussiano. O que se supõe faltar ao "alemão típico" são as virtudes individualistas da tolerância e do respeito pelos demais indivíduos e suas opiniões; o pensamento independente e aquela integridade de caráter que fazem o indivíduo defender suas convicções perante um superior - qualidades que os próprios alemães, em geral cônscios de não possuírem, chamam Zivilcourage; a consideração pelos fracos e doentes; e o saudável desprezo e antipatia pelo poder, que somente uma longa tradição de liberdade pessoal pode criar. Parece faltar-lhes ainda quase todas essas pequenas porém importantes qualidades que facilitam as relações entre os homens numa sociedade livre: a bondade e o senso de humor, a modéstia pessoal, o respeito pela privacidade e a fé nas boas intenções de seus semelhantes.

Após tais considerações, não causará surpresa a ninguém que essas virtudes individualistas sejam ao mesmo tempo virtudes eminentemente sociais, qualidades que suavizam os contatos sociais, que tornam menos necessário, e ao mesmo tempo mais difícil, o controle que vem de cima. São virtudes que florescem onde quer que tenha prevalecido a sociedade de tipo individualista ou comercial e que, inversamente, inexistem quando predomina a de tipo coletivista ou militar - diferença que se pode (ou se podia) observar nas várias regiões da Alemanha, como agora se observa entre as ideias que reinam naquele país e as ideias características do Ocidente. Até bem pouco, pelo menos, nas regiões da Alemanha que mais longamente estiveram expostas às forças civilizadoras do comércio - as antigas cidades comerciais do Sul e do Oeste e as cidades hanseáticas - os conceitos éticos em geral tinham muito mais afinidade com os dos povos ocidentais do que com aqueles que hoje prevalecem em toda a Alemanha.

Seria, no entanto, injusto considerar as massas que sustentam um regime totalitário destituídas de qualquer fervor moral só porque prestam apoio irrestrito a um sistema que a nós se afigura a negação dos melhores valores morais. Para a sua grande maioria, é justamente o contrário que se verifica: a intensidade das emoções morais em que repousa um movimento como o nacional-socialista ou o comunista talvez só possa ser comparada à dos grandes movimentos religiosos da história. Uma vez admitido que o indivíduo é simples instrumento para servir aos fins da entidade superior que se chama sociedade ou nação, manifesta-se necessariamente a maior parte dessas características dos regimes totalitários que nos enchem de horror. Da 
perspectiva coletivista, a intolerância e a brutal supressão da dissidência, o completo desrespeito pela vida e pela felicidade do indivíduo são consequências essenciais e inevitáveis dessa premissa básica. O coletivista pode aceitar esse lato, e ao mesmo 
tempo afirmar que seu sistema é superior àqueles em que se permite que interesses 
individuais "egoístas" criem embaraços à plena realização das metas visadas pela comunidade. Quando os filósofos alemães repetidas vezes caracterizam como imoral em si mesma a busca da felicidade pessoal e apenas digno de louvor o cumprimento do dever imposto, estão usando de completa sinceridade, por mais incompreensível que isso pareça às pessoas educadas numa tradição diferente. 

Onde existe uma finalidade comum e soberana, não há lugar para uma moral ou para normas gerais. Até certo ponto, nós próprios experimentamos isso durante a guerra. A guerra e o perigo mais grave, no entanto, levaram os países democráticos a uma situação que só de longe se assemelhava ao totalitarismo, poucas vezes prejudicando os demais valores em função de um objetivo único. Mas quando toda a sociedade é dominada por alguns fins específicos, é inevitável que, vez por outra, a crueldade se torne um dever; que ações que nos revoltam, tais como o fuzilamento de reféns ou o extermínio de velhos e doentes, sejam tratadas como meras questões de conveniência; que arrancar centenas de milhares de indivíduos de suas casas e transportá-los compulsoriamente para outro lugar se converta numa linha de ação política aprovada por quase todos, menos pelas vítimas; ou que idéias como a "conscrição das mulheres para fins de procriação'' possam ser consideradas a sério. O coletivista tem sempre diante dos olhos uma meta superior para a qual concorrem essas ações e que, no seu modo de ver, as justifica, porque a busca do objetivo social comum não pode ser limitada pelos direitos ou valores de qualquer indivíduo. Mas, enquanto para a massa dos cidadãos do Estado totalitário é muitas vezes a dedicação desinteressada a um ideal - embora esse ideal nos pareça detestável - que os leva a aprovar e até a praticar tais atos, o mesmo não se pode alegar em favor dos dirigentes da política estatal. Para ser um auxiliar útil na administração de um Estado totalitário, não basta que um indivíduo esteja pronto a aceitar justificações capciosas de atos abomináveis; deve estar preparado para violar efetivamente qualquer regra moral de que tenha conhecimento, se isso parecer necessário à realização do fim que lhe foi imposto. Como o chefe supremo é o único que determina os fins, seus instrumentos não devem ter convicções morais próprias. Cumpre-lhes, acima de tudo, votar uma fidelidade irrestrita à pessoa do líder; em seguida, o mais importante é que sejam desprovidos de princípios e literalmente capazes de tudo. Não devem possuir ideais próprios que desejem realizar, nenhuma ideia sobre o que é justo ou injusto que possa criar obstáculos às intenções do líder. Desse modo, as posições de mando oferecem àqueles que possuem convicções morais semelhantes às que têm guiado os povos europeus poucos atrativos que compensem a repugnância causada por muitas das tarefas a executar, e escassas oportunidades de satisfazer os desejos mais idealistas, de recompensar os inegáveis riscos, o sacrifício da maioria dos prazeres da vida privada e da independência pessoal que esses postos de grande responsabilidade sempre impõem. A única satisfação é a da ambição do poder em si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazer parte de uma máquina perfeita, imensamente poderosa, diante da qual tudo deve ceder.


Por outro lado, embora pouco haja para induzir homens bons, segundo nossos padrões, a aspirar a cargos de importância na máquina totalitária, e muito para afastá-los dessas posições, haverá oportunidades especiais para os insensíveis e os inescrupulosos. Será preciso desempenhar tarefas de inegável crueldade, mas que não podem deixar de ser executadas, a serviço de alguma finalidade superior, com a mesma perícia e a mesma eficiência que quaisquer outras. Havendo, assim, necessidade de ações intrinsecamente nocivas e que todas as pessoas ainda influenciadas pela moral tradicional relutarão em fazer, a disposição para praticar tais ações converte-se no caminho da ascensão social e do poder. Numa sociedade totalitária, são numerosas as posições em que é necessário praticar a crueldade e a intimidação, a duplicidade e a espionagem. Nem a Gestapo, nem a administração de um campo de concentração, nem o Ministério da Propaganda, nem a S.A. ou a S.S. (ou seus equivalentes italianos ou russos) são lugares favoráveis à prática de sentimentos humanitários. E, no entanto, é exercendo esses cargos que se chega às posições supremas no Estado totalitário. É corretíssima a conclusão do ilustre economista americano que, após enumerar os deveres das autoridades num Estado coletivista, afirmou:

"Eles seriam obrigados a fazer essas coisas, quisessem ou não; e é tão reduzida a probabilidade de o poder ser exercido por homens que detestem a sua posse e exercício quanto a de alguém extremamente bom e sensível vir a ser feitor de escravos." Não nos é possível, todavia, esgotar aqui o assunto. O problema da seleção dos líderes está intimamente ligado ao amplo problema de selecioná-los segundo as opiniões que essas pessoas exibem, ou melhor, de acordo com a presteza com que se adaptam a um corpo de doutrinas em constante transformação. E isto nos conduz a um dos mais característicos aspectos morais do totalitarismo: sua relação com as virtudes que se incluem na denominação geral de veracidade e seus efeitos sobre estas. Trata-se de assunto tão amplo que requer um capítulo especial.